13 março 2015

"Crise humanitária"?!


   A Wikipédia informa que uma "crise humanitária" é «uma situação de emergência, em que a vida de um grande número de pessoas se encontra ameaçada e na qual recursos extraordinários de ajuda humanitária são necessários para evitar uma catástrofe ou pelo menos limitar as suas consequências.»

   Porém, o Ciberdúvidas alerta para o erro frequente de se utilizar tal expressão, explicando que se trata de um equívoco causado pela tradução literal do adjetivo inglês humanitarian, que não faz sentido transpor para o nosso idioma, uma vez que o significado de humanitário em português é «em prol da humanidade». Uma vez que as situações de crise, ou de catástrofe, não acontecem em favor da humanidade, antes colocando-a em situação de perigo, só a ajuda e o apoio é que se podem considerar humanitários.

  Mas as pessoas insistem em falar de "crises humanitárias" e em "catástrofes humanitárias". É um daqueles casos complicados, em que me parece que o uso irá claramente impor-se à norma, isto é, em que a força do hábito linguístico de toda uma comunidade (que inclui os falantes de português espalhados pelo mundo) será decerto mais forte do que quaisquer argumentos semânticos, etimológicos, etc., que se possam invocar em nome da utilização rigorosa de tal palavra.

    Não é que eu seja a favor da tradução fácil e simplista que tantas vezes nos leva a dizer autênticos disparates só por preguiça de pensar um pouco (chamando, por exemplo, "condicionador" ao amaciador de cabelo). Mas tenho de reconhecer que dificilmente os falantes comuns serão convencidos a falar de "crises humanas", quando o que está em causa é a sobrevivência de centenas ou milhares de pessoas, e não a tendência natural do ser humano para viver em estado de crise, no sentido filosófico do termo, por exemplo em virtude da consciência da finitude da vida ou da impossibilidade de cada eu ser um outro.

    É normal procurarmos diferenciar as palavras, quando pretendemos referir-nos a ideias diferentes. É isso que leva tanta gente a distinguir, por exemplo, "rúbrica" (assinatura) de rubrica (tópico ou secção), embora somente a palavra rubrica esteja consagrada nos dicionários, com ambos os significados. É natural, portanto, que se use cada vez mais "humano", em termos genéricos, quando se pretende qualificar algo "relativo à humanidade" e "humanitário" quando se quer falar de algo que põe em causa a sobrevivência das pessoas.